Por ter vindo de um processo de formação e de experiências profissionais na área de arte que sempre falavam sobre inclusão, sempre procurei olhar para os meus alunos com atenção, de forma individual, buscando o melhor resultado possível. Pra minha sorte a escola já trabalhava também com inclusão na prática e me deparei com turmas diversas, planos de ensino individualizados de acordo com as necessidades de cada aluno, psicóloga disponível na escola, mas ainda percebia uma certa resistência quanto as questões de gênero e sexualidade dentro do ambiente escolar.
No decorrer do ano, percebi que os alunos sempre traziam para a sala de aula, dúvidas e curiosidades que geravam discussões e debates sobre questões de gênero, feminismo, posicionamento da mulher no mercado de trabalho, comunidade LGBTQIA+, e principalmente sobre saúde mental no ambiente escolar. Vi na curiosidade dos meus alunos uma oportunidade de abordar questões importantes para o crescimento e a formação cidadã deles e comecei a levar para a sala notícias e acontecimentos cotidianos que pudessem gerar discussões e aprendizado, sempre aliado a produções artísticas (minha área de atuação) e ao conteúdo proposto pela escola. Tais discussões resultaram em um projeto interdisciplinar no mês de setembro, em decorrência do setembro amarelo, e foi neste momento que tive uma das experiências mais significativas para minha carreira em sala de aula, momento que me trouxe a este lugar como aluna desta pós também.
Numa turma de 9º ano do ensino fundamental havia uma aluna que vinha perdendo rendimento, não importava a prática proposta pelos professores. Ela demonstrava grande desinteresse pelos conteúdos e pelas atividades e comecei a perceber nela uma tristeza e apatia que não condizia com o simples desinteresse. Os pais já haviam sido comunicados dos resultados e consideravam as ações da aluna como pura preguiça ou fase enfrentada pela adolescente e diziam que logo passaria. Não demorou pra que essa apatia se tornasse crises e mais crises de choro e ansiedade, muitas acontecendo nas minhas aulas durante as discussões e, preocupada, comecei a me aproximar mais dessa aluna a fim de observar e entender o que estava acontecendo. Nesse momento a gente cogita tanta coisa... abuso, negligência, abandono, e passei as semanas que se seguiram entre setembro e outubro conversando bastante com ela, mesmo que fossem assuntos banais e irrelevantes. Deixei a escola ciente da minha preocupação pois até para os professores durante os conselhos, tudo relacionado a aluna beirava o desinteresse e a apatia.
Chega o dia em que apresentei a turma o clipe "Amarelo", um vídeo da atriz Mariana Xavier falando sobre bullying, e iniciei em sala uma discussão sobre prevenção ao suicídio. Minha aluna teve uma das piores crises de choro possível e ao fim da aula, na troca de salas, a chamei no corredor pra perguntar o que estava acontecendo, o motivo de ela estar tão desesperada, me propondo ajudá-la. Conversamos muito e vi quando ela levantou as mangas de blusa de frio as marcas de automutilação nos braços. Sem fazer alarde, observei, escutei e levei o que observei para a direção da escola.
A direção acionou a psicóloga, chamou os pais que foram muito resistentes, e a partir daí, frente a negativa dos pais de intervir, foi solicitado que os professores dela preenchessem uma ficha de anamnese que seriam mostradas aos pais. Na visita seguinte, o encontro dos pais aconteceu com a presença da psicóloga que, com as fichas de anamnese, conseguiu convencer os pais a iniciarem o processo terapêutico com a aluna. Foi quando descobrimos que a aluna estava passando por uma grande rejeição dentro da família por estar passando por um processo de auto descoberta quanto a sua sexualidade e gênero. Uma das pessoas da família tinha uma profunda rejeição por pessoas da comunidade LGBTQIA+, chegando a proferir discursos de ódio em que dizia que pessoas assim deveriam ser mortas. Foi nesse momento que compreendemos a situação e mudamos a abordagem da acolhida a esta aluna. A partir daí, tudo mudou, ela passou a se comportar de forma mais tranquila, confiante, recuperou seu rendimento e confiou mais nos professores e na escola que entendeu neste momento o quanto a inclusão pautada em gênero e sexualidade também se fazia importante.
No ano de 2020 com a Pandemia e o aumento das discussões públicas acerca de gênero e sexualidade, minha aluna se descobriu um menino/adolescenteas transmasculino e iniciou o seu processo de aceitação, agora com acompanhamento psicológico e acompanhamento da equipe docente.
Hoje ele está cursando faculdade de psicologia, namorando, em processo de aceitação da família que tem se esforçado para compreender melhor seus processos e sua indentidade (salvo o membro da família que causou tanta dor e segue com os mesmos discursos), e me sinto grata por ter tido a confiança dele no seu momento de maior vulnerabilidade, e grata também por estar atuando em um espaço acolhedor que não mediu esforços para que tudo fosse resolvido da melhor forma, evitando ao máximo os danos a pessoa mais vulnerável deste processo.
Ter nessa disciplina a discussão sobre gênero e sexualidade e inclusão para além das deficiências e neurodivergências foi de extrema importância para minha formação como profissional pois pude compreender o que já tenho feito de forma a incluir meus alunos, o que posso fazer para melhorar os processos de inclusão e todo potencial que existe dentro da educação inclusiva.
Me sinto mais preparada para mediar conflitos, conversas, debates, e atuar de forma ativa em favor da inclusão dentro dos espaços onde atuo enquanto educadora.